COMO ERA TEMIDO O MEU TIÚ!

Minha mãe não me ameaçava com boi da cara preta, Cuca, o Coisa ruim, Zé Catacumba, fantasmas, vampiros ou bruxas. Quando eu aprontava, ela ameaçava me jogar para o tiú!
O tiú que habitava o terreiro da fazenda lá de casa era enorme! Mais de um metro da cabeça até a calda. Mas não era feio. Era feroz, valente e aterrador! Os cachorros não conseguiam caçá-lo. Ora o tiú os enfrentava, ora corria deles, como se conhecesse estratégias de guerra. Vez por outra, ouviam-se miados aterradores de gatos feridos pelas chicotadas da calda do feroz habitante dos paióis de minha casa.
Era uma casa grande, uma típica fazenda mineira. Possuía 05 quartos, apenas um banheiro enorme, uma grande sala de jantar, sala de estar, larga cozinha com fogão a lenha, alpendre, porões, paióis, uma varanda sobre um pequeno curral e um vasto e lindo quintal. Muitas frutas, um chiqueiro, uma horta gigante e produtiva. Foi meu lar por uns 12 anos!
Lá era o império do tiú! Eu tinha raiva e atirava pedras nele, de longe. Certa vez, deitado numa coluna de pedras que cercava o caminho entre a varanda da fazenda e o portão de entrada, senti um arrepio percorrer meu corpo. Recusa-me a levantar e olhar pra baixo. O som, quase imperceptível, de garras afiadas escalando a parede, deixava claro para mim do que se tratava. Era ELE, o Tiú! Fiquei sem fala. Virei-me, bem devagar, para o lado, e olhei para baixo. Ele estava a menos de um metro de mim. Sua língua lambia-lhe a boca repetidamente. Os olhos dele nos meus deixava claro que não me temia. Ficamos ali, nos encarando. Levantei-me, devagar. Ele ficou parado. Dei um grito e um pulo pra longe dele e saí correndo. “O tiú, o tiú”, eu gritava! Gritei, porque era raro vê-lo de dia. Tão poucos o viam, que se tornou um mito na fazenda.
Por uns 04 anos ele comeu ovos, pintos, tirava o sono dos moradores da casa produzindo pesadelos. Neste período, meu pai, amigos e parentes tentaram matá-lo. Em vão.
Às vezes, passávamos horas na espreita, tentando vê-lo. Mas ele não se deixava ver. Astuto, ligeiro. Devo tê-lo visto, além do encontro mencionado, umas dez vezes nos mais de 04 anos! No paiol, embaixo da casa grande, onde havia muita coisa, cereais, ferramentas, ninhos de galinhas, outros répteis, inclusive cobras, ele se escondia…
O povo já começara a inventar estórias sobre ele. Diziam que o tiú do Mário, como era chamado, tinha dado uma carreira numa mulher grávida, que tinha atacado crianças com o vigoroso rabo. Na realidade, os peraltas, atentados, inclusive eu, levávamos chicotadas de nossos pais e eles culpavam o tiú!
Uma tarde, meu pai resolveu dar um basta naquilo. Chamou o irmão, o primo, os empregados, vizinhos, armaram-se de porretes, cartucheiras, facões e cercaram o paiol. Retiraram madeira, milho, ninhos, melancia, mandioca, ferramentas de lá. Com lanternas, naquele enorme espaço debaixo da casa, iriam dar fim ao demônio que aterrorizava a fazenda. De repente, gritos! Corria gente para um lado e para o outro. Era o tiú correndo do povo e o povo correndo do tiú. Uma cena dramática e hilária. No corre-corre, alguém conseguiu pegar o bicho. Levou uma chicotada do rabo e uma mordida. A fera iria fugir! Na tentativa da fuga, o tiú escondeu-se num buraco. Um dos caçadores encostou o cano da espingarda no buraco e meteu bala…
Senti um aperto no peito. Não quis sair para ver o resultado da caçada. Foi uma euforia geral. O bicho era grande. Daria uma boa fritada. Com muito receio e pesar, desci as escadas e fui, devagar, ver o troféu que era exibido. Era ele, o tiú. O tiro pegou-lhe nas costas de onde escorria pouco sangue. Os olhos dele ainda me fitaram, como num aceno de adeus…
Uma enorme tristeza tomou conta de mim. Quantas pedras lhe atirei? Quantas vezes o xinguei, amaldiçoei? As galinhas não gritariam mais, não se ouviria mais barulho vindo do paiol, os ovos chocariam e haveria mais pintinhos no quintal. Não haveria mais sonos perdidos nas noites em que o réptil se alimentava, não haveria mais pesadelos…
As costas das crianças, no entanto, não deixaram de ter marcas de chicotadas… Por que mataram, então? Não poderiam tê-lo capturado? Quem mesmo que perdeu?
A aparente paz que reinou na fazenda contrastava com a aflição do meu ser. Sentia-me culpado. Quem era o monstro, afinal?
Aquela noite foi de festa na fazenda. O couro do animal brilhava na luz da fogueira. O cheiro da carne me assustava. Eu gostava de festa! E muito! Mas fui dormir cedo. O barulho da música e das conversas barulhentas foram sumindo. Restou-me o olhar do tiú. Aquele olhar destemido não morreu… Ainda está em mim!
Meu pesadelo, agora, sou eu…

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