‘Corpos nas ruas e casas queimando’, diz jornalista em Kiev

tai Anghel, 53, já esteve em muitas zonas de guerra desde o início dos anos 1990, das guerras civis da Croácia e da Bósnia, durante a desintegração da Iugoslávia, aos combates no Iraque e na Síria. Está agora em Kiev, capital da Ucrânia, alvo de uma invasão russa há mais de uma semana.

Jornalista israelense, o repórter diz ter encontrado no país amplo respeito à sua nacionalidade -experiência oposta à que teve em outros conflitos. Afirma, portanto, não ver qualquer sustentação para o argumento de Vladimir Putin de que o governo do país do Leste Europeu é neonazista.

Mas a boa experiência nesse aspecto não anula as cenas de violência que vem registrando enquanto coleta material para o Canal 12 de Israel, um dos mais populares do país, e para um futuro documentário.

À reportagem, do hotel onde está hospedado, Anghel relata o que tem observado, em especial o cotidiano da pequena cidade de Irpin, nos arredores de Kiev, ponto estratégico para chegar à capital. Conta ainda como foi uma recente entrevista com o presidente Volodimir Zelenski, as críticas feitas pelo líder ucraniano à falta de ajuda de Israel e uma conversa que teve, por videochamada, com um antigo conselheiro de Putin.

Houve um bombardeio muito pesado ali. Foi o dia mais perigoso que presenciamos. Estávamos na beira da estrada e “boom!”, vimos diversas casas queimando. Há corpos nas ruas, casas destruídas. As pessoas que ainda estão ali talvez não estejam vivas nas próximas horas. Vimos os cachorros rodeando as casas, procurando seus donos. Senti que estava documentando um capítulo muito obscuro da história.

Quando chegamos aqui, ainda nos primeiros dias, era muito difícil -quase impossível- trabalhar. E isso foi muito frustrante do ponto de vista jornalístico, claro. Havia toque de recolher, não podíamos sair nem sequer por dez minutos, muito menos usar o nosso equipamento.

Ainda não há invasão russa em Kiev, mas existem pequenos grupos de espiões russos que penetram na cidade. Eles estão escondidos em algumas casas. Então, naturalmente, há muita desconfiança quando chega um estrangeiro. E, na verdade, consigo entender a população.

Um dia estava tentando usar minha câmera e fui ameaçado; chegaram a apontar uma Kalashnikov (ou AK-47, da época soviética) para um amigo brasileiro que estava comigo. Já estive com ele no Iraque, em território do Estado Islâmico, onde enfrentamos situações muito perigosas, e desta vez ele disse: “Foi a primeira vez que eu pensei que ia morrer”.

Mas, então, algo aconteceu. A guerra se tornou real, ganhou escala. Tornou-se muito perigoso, e a maioria dos jornalistas israelenses foi embora. Ficamos eu e outro colega. E, como o número de jornalistas diminuiu muito, outra coisa também mudou na relação com a imprensa: agora as pessoas nos conhecem.

Conheci um fotógrafo local e perguntei se ele tinha amigos que estavam se preparando para defender a cidade. Ele me pediu para esperar alguns minutos e ir até um local. Chegando lá, vimos os voluntários. Somente naquele dia eles prepararam 500 coquetéis molotov. Durante a semana foram milhares.

E eles não os entregam somente para os soldados, mas também para os vizinhos, que os guardam em casa, e para quem está em carros, para o caso de passarem por um tanque russo. Um sniper [atirador de elite] também nos levou para um dos prédios mais altos da cidade para nos mostrar como ele trabalha.

Ontem tivemos uma mensagem de supetão: um dos soldados da linha de frente nos disse: “Vocês têm de ir ao palácio do governo em duas horas”. Perguntamos o motivo, e ele disse que não poderia nos dizer, apenas que deveríamos estar lá. Eles nos colocaram num carro com vidros escuros, de modo que não conseguíamos ver o lado de fora. Desembarcamos dentro de um prédio, um verdadeiro labirinto, com tudo muito escuro. E, então, uma porta se abre e há uma mensagem da parede: sala do presidente.

Com uma camiseta simples, Volodimir Zelenski não quis usar o púlpito disponível. Preferiu uma cadeira de plástico. E foi um momento muito curioso, porque ele ria de si mesmo: “Estamos todos muito mal aparentados, não é? Parece que dormimos apenas três horas nas últimas semanas.”

Mas então ele ficou muito sério ao falar de Putin. Perguntei a ele sobre Israel, que tem as melhores tecnologias contra mísseis. Questionei se ele havia tentado obter ajuda, equipamento e tecnologia militar, se tinha expectativas. Ele estava muito emocionado e agradecido ao povo de Israel, principalmente por imagens de muitas pessoas, com a bandeira ucraniana, rezando no Muro das Lamentações.

Mas também estava muito crítico em relação ao governo. Ele me disse: “Israel e Ucrânia têm um relacionamento muito bom, mas amizades, em tempos como esse, são testadas; e Israel está falhando, não está nos ajudando em nada.” Zelenski é uma das figuras mais curiosas com as quais já conversei. Há três semanas era considerado um comediante, numa posição que não lhe era comum, e, de repente, está sendo comparado a Winston Churchill por algumas pessoas.

Com a guerra em curso, é possível ver semelhanças com outros conflitos. Quando me levaram para a posição dos snipers, lembrei-me da Bósnia. Já a torre de TV bombardeada em Kiev me lembrou de Kosovo, quando uma estação de TV em Belgrado foi bombardeada, porque, afinal, é uma guerra de propaganda.

Mas o resto é completamente diferente. Sabemos que essa guerra não vai ficar apenas nas fronteiras da Ucrânia. Não é uma questão de aglutinar o Donbass ou tomar algumas áreas no Mar Negro. Os russos estão absolutamente convencidos de que a Ucrânia é o irmão caçula que não sabe escolher o que é melhor para ele. E Putin está disposto a apostar tudo.

Acho que ele gostaria de ser alguém que nunca seremos capazes de interpretar. Não temos a menor ideia do que ele vai ou não fazer -e isso é o que mais amedronta, porque é difícil fazer planos.

Já aqui em Kiev, conversei por Zoom com um antigo conselheiro de Putin, que me disse ter aconselhado-o a invadir a Crimeia em 2014 e, de tempos em tempos, a seguir em frente na invasão. “E Putin esperou oito anos, é um homem muito paciente”, comentou. Eu disse que muitos ririam do que ele acabara de dizer.

É a minha primeira vez na Ucrânia, ainda que tenha um avô que nasceu aqui. Fico pensando o que ele pensaria se estivesse vivo, porque, afinal, jovens como ele assistiram à Segunda Guerra, quando alguns ucranianos colaboraram com os nazistas. Depois, muita coisa mudou. Não é que não haja nenhum lastro de antissemistismo, mas eu me sinto muito seguro e confortável aqui em dizer que sou judeu.

Infelizmente, há uma grande propaganda nesta guerra, com a Rússia se referindo ao governo da Ucrânia como neonazista. Estrangeiros e mesmo a população russa podem levar isso a sério. Mas eu conheci muitos judeus aqui, muitos que estão se somando às milícias armadas. E eles são ucranianos, são patrióticos. Em algumas coberturas, como no Iraque ou na Síria, onde estive muitas vezes, tive de esconder minha identidade israelense e usar meu passaporte internacional.

Em Irpin, cidade que mencionei no início, conheci um homem que, ao descobrir que eu era de Israel, disse que tínhamos muito em comum. Ele me disse que iriam derrotar os russos graças a Elohim -termo em hebraico para Deus. E, de repente, começou a cantar “Hava Nagila”, a mais tradicional música na história judaica -e sorrindo. Aquilo para mim foi a experiência mais real até aqui.

Quanto tempo vou ficar aqui? Espero que o máximo possível. Eu vim aqui para estar com as pessoas, acompanhar o momento. Quando algo acontece, não posso fugir e deixá-los, como se fosse muito difícil para mim e apenas eles tivessem de lidar com isso. Eu me importo. É isso que fiz toda a minha vida, tento estar no lugar mais interessante no momento mais crucial.

Dol

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