Funai realiza maior expedição para contato com índios isolados dos últimos 20 anos

Enquanto o país estava concentrado no carnaval, a Fundação Nacional do Índio (Funai) preparou a maior expedição dos últimos 20 anos – seja em mobilização de pessoal, seja de orçamento – para fazer contato com um grupo de índios isolados da região da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas.

O objetivo principal da missão é evitar conflitos entre os Korubo do Coari e os Matis, outra etnia indígena da região. Os Korubo do Coari – grupo no qual parte dos índios permanece em total isolamento – reivindicam o direito à terra próxima ao Rio Coari e têm entrado em confronto com os Matis, já contatados, pelo que entendem como invasões de território, além de outras divergências.

O histórico de interação entre as etnias remete aos idos da década de 1920 (saiba mais abaixo), mas o auge do recente tensionamento aconteceu em julho de 2018, quando técnicos da Funai perceberam a possibilidade de um novo encontro, com aproximação de menos de um quilômetro, entre os Korubo e os Matis da aldeia Todowak.

Em 2015, também houve outro capítulo importante da tensão entre as duas etnias, principal suspeita dos antropólogos e indigenistas da Funai para o fato de as duas tribos estarem se aproximando fisicamente nos últimos tempos. Naquele ano, um desentendimento interno entre os Korubo dividiu a aldeia indígena. Uma parte ameaçada fugiu de um afluente do Rio Coari – tradicional local de moradia dos Korubo – para as margens do Rio Branco, mais próximo aos Matis.

Na saída, o pequeno grupo de índios Korubo que se desentendeu levou uma integrante com parentesco mais próximo da população da mesma tribo que permaneceu no afluente do Rio Coari. Nesta dispersão, contudo, o grupo menor de Korubos encontrou os Matis, o que levou a uma outra intervenção da Funai.

Esses dois grupos Korubo nunca mais se encontraram, mas os integrantes da tribo que tiveram esse recente contato da Funai, após o evento de cisão, querem rever seus parentes que permaneceram isolados no Coari. Na avaliação dos funcionários de carreira da fundação, diante dos vários fatos que ocorreram neste caso, não realizar a expedição seria uma omissão. Há risco de extinção física da etnia, segundo eles, no caso de um contato inadvertido.

Segundo informado ao blog, a Funai evitou ao máximo o contato com esses índios isolados sempre com o intuito de seguir a política atual da fundação, consolidada a partir de 1987. Nesta época, se iniciou a ideia atual de “zero encontro”, para garantir autonomia dos índios isolados. A política é de nunca tomar a iniciativa de aproximação para preservar a decisão deles de se isolar, mas o órgão abrirá uma exceção com o argumento de tentar evitar esse confronto entre os dois grupos indígenas na terra do Vale do Javari.

O gasto inicial da expedição aos chamados Korubo do Coari – que têm entre 30 e 40 índios isolados em estimativa feita em 2015 pela Funai – será de R$ 250 mil. Contudo, o gasto total em um ano pode chegar a R$ 816 mil, caso tudo saia como o planejado e o contato seja realizado com sucesso.

A Funai enviou uma equipe de cerca de 25 integrantes e terá o apoio da Polícia Federal (PF), da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas e do Exército. O Ministério Público Federal e outras organizações indígenas da região foram informados da missão. Uma embarcação grande com quatro botes, além de helicópteros, deve gastar 2 mil litros de gasolina. Seis índios Korubo já contatados, com parentes entre os isolados, participam da ação.

A equipe responsável pela expedição pretende utilizar um plano de contingência para entrar em contato com os índios e evitar danos à saúde do grupo. Interações com povos indígenas no passado levaram a tragédias, com a morte de até 70% da população de índios por doenças como gripe ou sarampo, porque as tribos não têm imunidade.

Em dezembro de 2018, uma portaria conjunta publicada pela Funai e pelo Ministério da Saúde regulamentou as ações de atenção à saúde dos povos indígenas isolados e de recente contato.

“O melhor cenário para nós seria que os Korubos isolados e os seus parentes que já têm contato com a Funai conseguissem interagir bem, permanecendo na região do Rio Coari sem adoecer. O pior cenário é haver um contato e os Korubo se dispersarem na mata. Não teríamos, neste caso, como avaliar eles por doenças”, afirma Bruno Pereira, coordenador-geral de índios isolados e recém contatados da Funai.

Bruno Pereira acredita que, se houver diálogo entre os dois grupos de Korubo, isso permitirá saber quem são os Matis, ajudando a pacificar as duas etnias. Se isso acontecer, a Funai avalia que terá conseguido atingir o objetivo principal de proteção física das duas tribos.

“A gente pensa filosoficamente essa política e como ela funciona eticamente, mas, acima de tudo, é uma política pública. Hoje, a gente tem a responsabilidade do Estado de garantir a proteção física e cultural tanto do grupo Korubo quanto dos Matis. O risco é delegar à sorte, que tem resultado em conflitos e mortes”, explica o chefe da expedição aos Korubo do Coari.

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Um sobrevoo no início do mês passado identificou três malocas e cinco roçados a 21 quilômetros dos Matis de Bukuwak.

“Essa proximidade dos Korubos, que estão quase dentro das aldeias Matis, é um cenário catastrófico. Em julho do ano passado, houve uma tentativa de contato clara, [os Matis] conseguiram pegar as redes [dos Korubos]. Tentaram cercar e não conseguiram. Mas se escalar para outro confronto, os Matis vão responder da forma tradicional deles, que é violenta”, diz o servidor da Funai.

A análise de pré-contato da Funai apontou como de alto risco a possibilidade de contato, conflito e transmissão de doenças entre as duas tribos. Outra preocupação da Funai, em menor escala, é o aumento de quadrilhas profissionais de caçadores ilegais, fortemente armados, que capturam animais como o pirarucu e têm intensificado a invasão da área.

Existem diversos grupos de índios isolados no Brasil, alguns com zero contato, outros já avistados na beira de rios. Segundo apurou o blog, são 114 registros de índios isolados no país, 28 confirmados, sendo 11 deles na TI Vale do Jaguari.

TI Vale do Javari

A TI Vale do Javari está localizada no extremo oeste do estado do Amazonas e tem fronteira com o Peru. Possui área de 8,5 milhões de hectares, a segunda maior terra indígena demarcada do Brasil, atrás apenas da região dos Yanomami, que possui 9,6 milhões de hectares de extensão.

A região concentra o maior número de povos indígenas isolados do mundo, como os Korubo – etnia em que se concentra a missão da Funai – e os Flecheiros.

Além desses povos, a terra do Vale do Javari abriga grupos de recente contato com a Funai: os Marubo, Kulina, Kanamari, Mayrouna, Tsohom Dyapá e os próprios Matis, que externaram o desejo de pacificar o conflito com os Korubo.

Os Korubo do Coari se alimentam de macacos, antas, bicho-preguiça e peixe-elétrico, se dividindo em três subgrupos na região, sendo que cerca de 88 deles já mantêm contato e convívio com equipes da Funai.

No entanto, os cerca de 40 índios isolados que estão na região do Rio Coari ainda não tiveram o primeiro encontro com as equipes da fundação.

Em uma missão realizada em julho e agosto de 2018, equipes da Funai estiveram na região e confirmaram a presença de grupos de índios isolados da etnia durante a expedição “Monitoramento da Presença de Índios Isolados no Rio Juruazinho”.

Histórico de conflitos no Vale do Javari

A região do Vale do Javari é marcada por conflitos entre os próprios povos indígenas. Os índios Korubo já estiveram envolvidos em vários confrontos no passado e, por isso, a Funai tem tratado a situação com cautela. Na região, eles são conhecidos como “caceteiros”, pois quando atacam fazem isso com armas feitas de madeiras, chamadas de bordunas.

Segundo relatos históricos obtidos pela Funai, a primeira interação entre os Korubo do Coari e os Matis aconteceu por volta de 1920. Durante um conflito, duas meninas Korubo foram raptadas pelo grupo Matis, permaneceram com eles e constituíram famílias, criando, então, uma ascendência Matis. Após o rapto das crianças, os dois grupos alternam relações de parentesco e de conflitos.

Enquanto os Korubo usam a borduna e zarabatanas como armas, utilizando até de venenos para caçar animais e se defender de inimigos, os Matis usam o arco e flecha.

O ponto de contato dos índios com o Estado brasileiro na TI Vale do Javari começou na década de 1970 quando, ainda sob a ditadura militar, o governo começou a abrir as grandes estradas na região, como a Transamazônica. Neste momento, a Funai chega à região para fazer contato com os índios isolados e permitir a construção das estradas.

O projeto inicial da perimetral do Amazonas previa que a estrada passasse numa região central do Vale do Javari e, para realizar a construção, equipes da Funai instalaram Postos Indígenas de Atração (PIA) na região, tentando contato com os Matis.

A ação não teve o sucesso esperado e os índios entraram em confronto com as equipes para evitar a construção das estradas. Antes mesmo da chegada da Funai ao local, os índios já lutavam contra madeireiros e os conflitos eram frequentes.

Nos anos de 1971 e 1972, a Funai chega à região para a construção da BR-307 e instala postos de atração para facilitar o contato com os grupos. As tentativas de contato são frustradas e os Korubo atacam bases da Funai, matando servidores da fundação.

Um dos casos mais emblemáticos de confronto aconteceu em 1975, quando o sertanista Jaime Pimentel foi morto por índios Korubo durante uma expedição pacificadora da Funai.

No mesmo período, a Petrobras chegou à região para tentar explorar o Rio Jaquirana. Ao perceber o potencial de gás e petróleo na região central do Vale do Javari, a estatal celebra um convênio com a Funai para tentar atuar no local. Os índios reagem à aproximação da Petrobras e uma sucessão de ataques acontece nos anos de 1982, 1983 e 1984.

Em outro caso emblemático, em 1984, o sertanista Lindolfo Nobre é assassinado com golpes de borduna – a arma indígena feita de madeira pelos índios Korubo – enquanto tentava aproximação com o grupo.

Em 1985, após os confrontos, a Funai assina portaria e interdita a região de Vale do Javari, dando início a processo de demarcação da terra.

Já em 1990, alguns índios do grupo Korubo começam a se aproximar de comunidade não indígenas no Itaquaí. A nova dinâmica mostra que um grupo pequeno havia se separado do grupo maior e, em 1995, um morador da comunidade Monte Alegre é morto pelos Korubo com golpes de borduna.

A retaliação acontece em seguida, quando moradores de comunidades ribeirinhas do Itaquaí emboscam o grupo Korubo e matam dois indivíduos com cartuchos fornecidos pelo prefeito de Atalaia do Norte.

Em 1996, é criada a Frente de Contato Vale do Javari para dar fim aos confrontos e manter missões de contato com os índios. A equipe conseguiu encontrar com o grupo Korubo chamado de Maya, que tinha cerca de 18 pessoas. A Funai conta com a ajuda dos Matis, que agiram como intérpretes e interlocutores da expedição. A partir de então, as equipes dependiam da ajuda dos Matis para realizar os contatos.

Apesar da aproximação, o grupo Maya entra em conflito e mata três madeireiros de Atalaia do Norte em 2000, aumentando a tensão na região.

Com o histórico de confrontos, a Funai recomenda a demarcação e interdição da terra indígena do Vale do Javari e, em 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso assina o decreto demarcando a terra oficialmente.

O número elevado de grupos isolados e a dificuldade de demarcar a terra por pequenas regiões fez com que a TI Vale do Javari fosse demarcada de forma geral, interditando a região.

No entanto, mesmo após a demarcação da terra, a Funai registrou conflitos entre os grupos indígenas nos anos de 2014, com mortes de Korubos e Matis, e 2015, com outra interação entre as etnias, que também ajudaram a motivar a fundação a começar a organizar a expedição desta semana.

Linha do tempo

1920 – Korubo e Matis entram em confronto pela primeira vez. Duas crianças Korubo são raptadas e constituem famílias no grupo Matis.

1971/1972 – Funai chega ao Vale do Javari para realizar primeiras ações e permitir a construção da BR-307.

1972 – Funai fracassa ao tentar manter contato com os Korubo.

1975 – Sertanista Jaime Pimentel é assassinato por índios Korubo, e Funai desativa postos na região. Petrobras tenta explorar a região de Javari/Jaquirana.

1980 – Confrontos entre índios e trabalhadores obrigam a Petrobras a buscar novos pontos de exploração nos terrenos mais altos entre os rios Itaquaí e Jandiatuba.

1982 – Petrobras e Funai celebram convênio para exploração mineral na região e postos do Itaquaí são reativados.

1982 a 1984 – Período de ataques dos índios aos trabalhadores.

1984 – Sertanista Lindolfo Nobre morre após ataque dos Korubo, e Funai determina o fim das ações na região.

1985 – Funai interdita a terra do Vale do Javari e inicia a etapa de demarcação definitiva da TI.

1990 – Os Korubo começam a se aproximar de comunidades não indígenas de Itaquaí.

1995 – Morador da comunidade de Monte Alegre é morto pelos Korubo. Em retaliação, moradores ribeirinhos matam dois índios.

1996 – Frente de Contato Vale do Javari é criada para resolver conflitos.

2000 – Três madeireiros de Atalaia do Norte morrem após confronto com integrantes do grupo Maya, outro grupo indígena da região.

2001 – Presidente FHC assina decreto demarcando a Terra Indígena Vale do Javari.

2013 – Os Matis tentam contato com alguns homens Korubo e registram o momento em vídeo.

2014 – Conflito fatal entre os Korubo do Coari e os Matis da aldeia Todowak, no Rio Coari.

2015 – Matis reivindicam contato, e Funai age para distensionar a questão. No fim do ano, os Matis realizam contato compulsório com um grupo isolado de Korubos do Coari.

2018 – Estudos mostram que existem 114 registros de índios isolados no país, 28 confirmados, sendo 11 deles no Vale do Jaguari.

2019 – Funai realiza ação de contato com grupo isolado dos Korubo para resolver o conflito por terras na região.

Por Matheus Leitão/G1

 

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