Uma publicação nas redes sociais mudou para sempre a vida de Gilberto Leite. A postagem trazia uma foto dele criança, uma foto dele adulto e o pouco que sabia sobre a vida anterior à adoção.
Por meio da publicação, aos 37 anos Gilberto reencontrou a família biológica, mas também descobriu que foi vendido quando tinha apenas dois anos pelo próprio pai.
“Foi um turbilhão de sentimentos. Não tem como explicar”, disse Gilberto ao g1.
O caso nunca foi levado à polícia ou à Justiça. O Código Penal brasileiro estabelece que crimes com pena máxima de até 4 anos, como o sofrido por Gilberto, prescrevem em 8 anos a partir da data em que foram praticados. Saiba mais ao longo da reportagem.
Descoberta por acaso
Hoje, Gilberto tem 41 anos e mora em Fazenda Rio Grande, na Região Metropolitana de Curitiba. Ele nasceu na capital paranaense e conta que só soube que era adotado aos 14 anos, após um comentário feito por um familiar.
Depois, ele confrontou os pais, que confirmaram a adoção e contaram como foi o processo. Gilberto afirma que, segundo os pais adotivos, o nome dele era Dominique antes da adoção.
Também de acordo com Gilberto, os pais adotivos disseram que a informação que tinham era que os pais biológicos moravam em Campo Largo, na Região Metropolitana de Curitiba, e morreram em um acidente de carro.
Após o acidente, disseram os pais adotivos, a avó ficou responsável pelas quatro crianças do casal e, por ele ainda ser muito pequeno, decidiu colocar Dominique para a adoção.
Gilberto conta que passou um tempo tentando processar a informação.
“Pirei a cabeça, fiquei revoltado. Fiquei pensando: ‘Poxa, porque foram me dar? Foram me jogar? Não quiseram ficar comigo?”, relatou.
Apesar disso, o homem conta que não culpava os pais adotivos. Segundo ele, o casal não conseguia engravidar e tinha o sonho de ter filhos.
Mais dúvidas
A revelação da adoção trouxe a Gilberto novas perguntas.
“Aquilo foi me corroendo. Eu aceitei, mas vem aquela vontade de ir atrás. Eu sentia aquela tristeza de ser filho único, não ter um irmão para conversar. Pensava: ‘Poxa, como eu queria conhecer meus irmãos, perguntar para minha avó, se ela ainda estiver viva, por quê ela me deu.”
Então, o pai adotivo o incentivou e o ajudou a buscar a família biológica. Mas as buscas não tiveram sucesso.
Anos depois, desta vez incentivado pela esposa, Gilberto decidiu usar as redes sociais para encontrar os irmãos. Ele conta que uma das publicações teve mais de 11 mil compartilhamentos.
Com a repercussão, um jornal local ajudou a descobrir mais informações sobre o acidente que teria matado os pais biológicos, mas novamente não teve sucesso.
Foto usada em publicação por Gilberto, a fim de encontrar família biológica. — Foto: Arquivo Pessoal/Gilberto Leite
Gilberto se reconheceu em foto do irmão
De acordo com Gilberto, ele recebia mensagens de pessoas de todo o Brasil: olhava as fotos, conferia as histórias, mas seguia sem pistas da família.
“Um dia uma moça me mandou mensagem falando: ‘Meu tio tem uma história de um irmão que sumiu muito parecida com a sua. Sumiu com dois anos de idade e se chamava Dominique, você não quer conversar com ele?”, conta.
Gilberto conta que já estava sem esperanças de reencontrar a família biológica, mas que autorizou a mulher a passar o contato ao tio dela.
Ao receber a mensagem do homem, Gilberto olhou a foto de perfil e se surpreendeu com a semelhança física.
“Quando eu olhei aquela foto eu pensei: ‘Nossa, sou eu mais velho aqui’. Ele passou o endereço da casa dele, peguei o carro na mesma hora e fui”, relembra.
O reencontro
Após visitar o irmão e confirmar a semelhança, Gilberto foi levado para a casa da mãe biológica, Izabel Vengue Martins. Ele conta que há pouco tempo ela havia perdido um filho, chamado Patrick.
“Eu era um dos mais parecidos com esse que morreu. Ela [a mãe] ficou olhando e falou: ‘Nossa, muito parecido com o Patrick’. Ai ela veio correndo, me abraçou e disse: ‘Você voltou para a família”, conta emocionado.
Apesar da semelhança, Gilberto decidiu fazer um exame de DNA para confirmar o parentesco.
“Não queria ficar com essa dúvida no meu coração. Fiz o DNA e deu 99,99%. Depois disso, foi só conhecer o resto da família. Uma época eu chorando que não tinha irmão, não tinha uma pessoa com quem conversar, e agora tenho mais de 10 irmãos”, afirmou.
Mais capítulos da história
As descobertas não terminaram no reencontro com a família biológica. A mãe contou a Gilberto que a família enfrentava problemas financeiros e que, um dia, enquanto ela estava fora, o pai biológico o vendeu para um homem.
“Minha mãe saiu desesperada me procurando, e a história estava quase chegando neste homem [que comprou a criança]. Ao invés de me devolver para minha mãe, ele resolveu me dar para um orfanato, e mandar sumir comigo, arrumar uma família para mim”, afirma Gilberto.
De acordo com o advogado Frederico Brusamolin, a ação do pai biológico de Gilberto fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Leia mais abaixo.
Segundo ele, a Izabel relatou que uma tia da família adotiva trabalhava na casa de uma funcionária do orfanato e comentou ter parentes que sonhavam em ter um filho, mas que tentavam engravidar e tinham sofrido diversos abortos.
“A mulher [do orfanato] falou para ela: ‘Espera, tenho uma criança que chegou para mim. Vou pegar e entregar para ele. Não precisa ele fazer nada”, conta Gilberto.
A partir do que a mãe biológica contou, Gilberto afirma que a funcionária do orfanato mandou o pai adotivo ir até uma praça da cidade e entregou a criança enrolada em um cobertor.
No local, a funcionária contou ao pai adotivo a versão de que os pais biológicos da criança tinham morrido em um acidente de carro.
Izabel afirmou que, pouco tempo após o desaparecimento de Dominique, o casal se separou. Com o dinheiro da venda do filho, o homem comprou uma moto e mobiliou a casa onde morava.
Gilberto conta que soube que o pai foi confrontado pela esposa, que perguntou o que ele havia feito com o filho, mas que ele se limitou a responder: “Não interessa”.
Anos depois, após o reencontro, o pai biológico de Gilberto entrou em contato e disse que fez o que achou que era o certo.
Coincidências
Gilberto conta que sempre procurou pela família em Campo Largo, onde achou que eles moravam. Porém, a família havia se mudado e várias vezes as vidas quase se cruzaram.
Segundo Gilberto, ele trabalhou em um mercado a 500 metros de distância do bairro onde a família biológica vivia e que já foi confundido com os irmãos.
“Teve uma época que eu fui jogar futebol em Curitiba, perto da casa deles. Uma pessoa chegou e perguntou: ‘Como que está sua mãe?’. E eu fiquei: ‘Não, você tá me confundindo’. Eu não dei muita bola para isso”, conta.
Em outra ocasião, durante o trabalho, uma senhora também o confundiu com outra pessoa, mas a situação não levantou suspeitas.
“Deve ter alguém parecido comigo ai mesmo”, pensou.
O nome da história
Segundo Gilberto, ele demorou para contar a descoberta aos pais adotivos por medo de fazê-los sofrer.
“Eles iam pensar que eu ia abandonar eles, ia deixar de amar eles, coisa que nunca ia acontecer. Minha família biológica me chama de Dominique, mas não posso mudar meu nome. Eu tenho uma história, tenho uma vida. Teria que fazer uma mudança total e não seria justo para meu pai que me criou, me deu tanto amor”, relata.
Assim, Gilberto optou em manter o nome de adoção.
“Dominique Vaz não tem nada, só tem o registro no cartório, não tem um RG, nada. Porque meu pai [biológico] me tirou uma vida, com dois anos me tirou essa oportunidade”, afirmou.
Mãe biológica esperou retorno do filho durante anos
Izabel Vengue Martins afirmou a Gilberto que ficou esses anos todos procurando e esperando pelo filho.
“Todo dia do meu aniversário minha mãe fazia um bolo e comemorava. Ela dizia: ‘Eu tinha certeza no meu coração que você ia voltar, então eu fazia todo mundo comemorar. Sempre orando e pedindo para Deus”, relatou.
Adoção legal garante direito da criança e adolescente
De acordo com advogados ouvidos pelo g1, a situação vivida por Gilberto é crime e quem o cometer pode ser punido com prisão por 1 a 4 anos e multa. Além disso, a mesma pena pode ser aplicada para quem paga ou é recompensado para receber a criança.
De acordo com o advogado Frederico Brusamolin, tanto quem “vende” uma criança, quanto quem “compra” podem ser responsabilizadas.
Conforme o advogado, o crime do qual Gilberto foi vítima já prescreveu. Segundo o Código Penal brasileiro, crimes com pena máxima de até 4 anos, como é o caso, prescrevem em 8 anos a partir da data em que foi praticado.
O também advogado Frederico Glitz explica que a venda de uma pessoa é considerada um contrato nulo do ponto de vista do Direito Civil Brasileiro.
“No Brasil, quem quer se tornar pai ou mãe de uma criança ou adolescente não o conseguirá por meio da entrega dela, mas por meio de um procedimento público e formal chamado de adoção. Trata-se, afinal, de um ser humano e não de uma mercadoria”, afirma Glitz.
Glitz reforça a importância de formalizar a adoção de uma criança ou adolescente.
“O processo de adoção é voltado justamente à proteção dos interesses da pessoa adotada, porque exige uma habilitação prévia dos candidatos à adoção, com o preenchimento de uma série de requisitos e demonstração de motivação idônea. A pessoa interessada em adotar deve ter consciência de que a adoção atribui ao adotado a condição plena, inclusive juridicamente, de filho”, afirma.
O advogado também explica que o processo de adoção legal envolve uma série de etapas a fim de garantir os direitos da pessoa adotada.
O caminho inclui etapas como a participação em cursos preparatórios e entrega de documentos para confirmar a idoneidade dos interessados. Além disso, em alguns casos, os envolvidos passam por um estágio de convivência familiar de até 90 dias.
“Os candidatos a adotantes são avaliados e apenas se preencherem todos os requisitos legais é que serão inseridos no Cadastro Nacional de Adoção”, afirma.
Pessoas que presenciarem ou souberem de crimes praticados contra crianças ou vulneráveis podem ligar no Disque 100.
G1