O Ministério Público Federal (MPF) ofereceu nova denúncia contra Sebastião Curió, o major do exército brasileiro que comandou a repressão à Guerrilha do Araguaia, no sudeste do Pará, resultando em centenas de camponeses torturados e dezenas de guerrilheiros mortos, cujos corpos jamais foram encontrados. A ação penal é assinada por oito Procuradores da República que integram a Força Tarefa Araguaia e foi apresentada à Justiça Federal em Marabá, tratando do assassinato, tortura e ocultação dos cadáveres de Cilon da Cunha Brum (“Simão”) e Antônio Teodoro de Castro (“Raul”).
Segundo a denúncia, “Sebastião Curió, no início do ano de 1974, no município de Brejo Grande do Araguaia, no Pará, no exercício ilegal das funções que desempenhava no Exército brasileiro, em contexto de ataque generalizado e sistemático – e com pleno conhecimento das circunstâncias deste ataque – contra opositores do regime ditatorial e população civil, matou, em concurso com outros membros das Forças Armadas ainda não totalmente identificados, Cilon da Cunha Brum e Antônio Teodoro de Castro. (…) Em seguida, o denunciado, coordenando ações finalisticamente dirigidas à produção do resultado, com o auxílio de outros militares, ocultou os cadáveres das vítimas, os quais ainda permanecem ocultos, a fim de apagar os vestígios do crime de homicídio e se manter impune.”
Curió poderá responder pelos crimes de homicídio doloso qualificado e ocultação de cadáver das duas vítimas, já que o crime de tortura, diz o MPF na ação, só foi incluído no Código Penal brasileiro em 1997, décadas após os fatos ocorridos na região conhecida como Bico do Papagaio, divisa entre os estados do Pará, Maranhão e Tocantins.
O crime de homicídio doloso (com intenção de matar) é considerado qualificado, no caso, porque foi praticado por motivo torpe, com o emprego de tortura e sem possibilidade de defesa das vítimas, que tinham sido capturadas e estavam rendidas, sem oferecer qualquer risco. A pena máxima prevista é de 30 anos de prisão. Pela ocultação dos cadáveres, as penas alcançam 3 anos para cada vítima.
O motivo torpe dos homicídios, de acordo com a denúncia, consistia “na busca pela preservação do poder, mediante violência e uso do aparato estatal, em contexto de ataque generalizado e sistemático contra opositores do Estado ditatorial, para reprimir e eliminar dissidentes contrários ao regime e garantir a impunidade dos autores de crimes de homicídio, sequestro, ocultação de cadáver e outras graves violações de direitos humanos.” A denúncia foi ajuizada ontem (18 de março).
Justiça de transição
É a terceira vez que Curió é denunciado por crimes cometidos durante a ditadura militar. A primeira ação penal contra ele, relacionada ao desaparecimento/sequestro de cinco vítimas, foi também a primeira da história do país sobre as atrocidades do regime. A denúncia é a 39ª em que o MPF trata de crimes do regime instalado em 1964. As ações do tema foram distribuídas à Justiça Federal no Pará, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Santa Catarina e Tocantins.
Em relação à Guerrilha do Araguaia, esta é a 5ª denúncia ajuizada pelo MPF. No total, as cinco denúncias dizem respeito ao desaparecimento forçado de doze vítimas. Ao todo, no Brasil, 59 agentes de Estado ou pessoas a serviço da União foram apontados como autores de graves violações de direitos humanos cometidas contra 52 pessoas. As informações sobre a atuação do MPF nesses casos foram reunidas em um site lançado no último mês de fevereiro: http://www.justicadetransicao.mpf.mp.br.
O primeiro processo contra Curió trata do sequestro de militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) no Araguaia e foi recebido pela Justiça em 2012 – o recebimento é uma etapa obrigatória em ações criminais e significa que os requisitos legais foram cumpridos pelo MPF – o que fez com que o militar fosse o primeiro réu do país por crimes da ditadura militar. O caso tramitava em Marabá mas foi trancado por um habeas corpus concedido pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1) a pedido de Curió. O MPF recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para anular o trancamento e o recurso aguarda julgamento. (Processo no. 0068063-92.2012.4.01.0000)
A segunda denúncia contra Sebastião Curió foi ajuizada em 2015 e trata de homicídios e ocultação de cadáveres contra três militantes comunistas no Araguaia. Nesse caso, o juiz de 1ª instância em Marabá, Marcelo Honorato, recusou o recebimento da ação penal, por considerar os efeitos da Lei de Anistia, que impediria a Justiça de julgar crimes cometidos durante a ditadura militar. O MPF recorreu da decisão e o caso aguarda apreciação pelo TRF1 desde então. (Processo no. 0000342-55.2015.4.01.3901)
Crimes imprescritíveis, permanentes e insusceptíveis de autoanistia
A discussão jurídica que o MPF trava – sobre a responsabilização por atos criminosos cometidos no regime ditatorial – desde o ano de 2012, quando foi ajuizada a primeira ação penal acusando Sebastião Curió por crimes durante o regime militar, se baseia no direito internacional e na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso Gomes Lund vs Brasil. De acordo com as leis internacionais, delitos como sequestro, homicídio e ocultação de cadáver não são alcançados pela prescrição ou anistia, porque representam atos de lesa-humanidade e/ou por se enquadrarem como crimes permanentes.
Para o MPF, os crimes de Curió “foram comprovadamente cometidos no contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964, por meio da violência”, o que, para o direito penal internacional, já constituíam crimes de lesa-humanidade na época dos fatos, “motivo pelo qual não estão protegidos por regras domésticas de anistia e prescrição”.
As ações penais relativas à Guerrilha do Araguaia têm por objetivo ainda dar cumprimento à primeira condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em processo movido por familiares das vítimas que foi julgado em 2010. A sentença obriga o país a localizar os corpos dos guerrilheiros e entregá-los às famílias para sepultamento e, também, a investigar os crimes e a responsabilizar/punir os envolvidos. O MPF entende que o cumprimento da sentença e dos tratados internacionais de direitos humanos se sobrepõe à Lei de Anistia.
Por essa razão o MPF conclui que as ações penais destinadas a dar cumprimento à decisão da Corte IDH não afrontam o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, que declarou a constitucionalidade da Lei de Anista, uma vez que a ADPF se restringiu ao controle de constitucionalidade da Lei, enquanto a sentença da Corte IDH no caso da Guerrilha do Araguaia trata do controle de convencionalidade da citada lei.
A guerrilha
A ação penal do MPF apresentada ontem contra Curió traz um histórico sobre a Guerrilha do Araguaia e a repressão que se seguiu. Confira trechos:
“Da segunda metade dos anos 1960 a meados de 1972, militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) deslocaram-se de vários Estados do país e se instalaram nas proximidades do Rio Araguaia a fim de organizar um movimento de resistência armada ao regime militar brasileiro a partir da mobilização da população rural local, episódio histórico que ficou conhecido como ‘Guerrilha do Araguaia’.
A atuação desse grupo centrava-se nos estados do Pará e do Tocantins (à época norte de Goiás), notadamente nos municípios de São Domingos do Araguaia, São Geraldo do Araguaia, Brejo Grande do Araguaia, Palestina do Pará, Xambioá e Araguatins. Com o objetivo de angariar simpatizantes da causa, os militantes estabeleceram relações com a população local, obtendo a adesão de novos membros. No início do ano de 1972, registra-se que havia quase setenta militantes da organização na área, bem como um número indeterminado de camponeses que se juntaram ao movimento.
Oficiais e agentes das Forças Armadas e de outros órgãos, sob o pálio protetivo do estado ditatorial, combateram duramente tais militantes, empreendendo inúmeras operações na região para identificar e eliminar a dissidência política. Segundo relatório oficial produzido pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP-SDH), o regime militar mobilizou, entre abril de 1972 e janeiro de 1975, um contingente estimado entre três e dez mil homens do Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal e Polícia Militar do Pará, Goiás e Maranhão.
Os dados oficiais, os relatórios produzidos sobre o assunto e as investigações realizadas pelo MPF atestam que a repressão política e militar à Guerrilha do Araguaia foi responsável por quase metade do número total de desaparecidos políticos no Brasil. (…)
As operações iniciais, realizadas no ano de 1972, não lograram localizar e dispersar os militantes, persistindo o foco de resistência. Entretanto, nas incursões posteriores (de maio e outubro de 1973), a partir de intensa atividade de inteligência, com a infiltração de militares na população local, identificados por codinomes e disfarçados de comerciantes, lavradores ou funcionários públicos, foi possível conhecer a situação dos militantes na área, rastrear seus acampamentos, identificar colonos que supostamente com eles colaboravam e recrutar guias/mateiros para auxiliar as ações repressivas do Exército na região.
A intitulada “Operação Sucuri”, fundamental para a localização e posterior desaparecimento forçado (sequestro, execução sumária e ocultação de cadáver) dos dissidentes políticos, teve como um de seus comandantes
em campo o denunciado Sebastião Curió, que afirmou perante a Justiça Federal, em 2015, que chefiou tal Operação e infiltrou 32 agentes disfarçados na região (o próprio denunciado se apresentava, sob codinome, como engenheiro do Incra), que circulavam no cotidiano da população, levantando informações acerca da guerrilha. Segundo o denunciado, quando da Operação subsequente, as Forças Armadas já detinham os dados necessários sobre os guerrilheiros.
Finda a Operação Sucuri, foi deflagrada, em 07 de outubro de 1973, a terceira e última campanha de enfrentamento ao movimento dissidente, denominada “Operação Marajoara”, na qual Sebastião Curió teve destacada participação e era o Comandante do Posto Marabá e da Base da Bacaba, transitando também por outras Bases do Exército na região. Integrava, portanto, a cadeia de comando dos órgãos envolvidos no desaparecimento e morte dos militantes, entre eles as vítimas Cilon Cunha Brum e Antônio Teodoro de Castro, executadas nesta Operação. A “Operação Marajoara”, definida como “descaracterizada, repressiva e antiguerrilha”, teve o objetivo de aniquilar as forças guerrilheiras atuantes na área e sua “rede de apoio”, camponeses que com eles mantinham ou haviam mantido algum contato.
Nessa fase houve o deliberado e definitivo abandono do sistema normativo vigente, decidindo-se pela adoção sistemática de medidas ilegais/criminosas que objetivavam o desaparecimento forçado dos opositores – sequestros e homicídios seguidos de ocultação dos cadáveres. Essa última campanha caracterizou-se pelo intenso grau de violência, especialmente por dois aspectos: eliminação definitiva dos militantes, mesmo quando rendidos ou presos com vida; e forte repressão aos moradores locais como forma de obter informações, obstar a ação de supostos apoiadores e fazer cessar o movimento dissidente. (…) Notadamente nos últimos combates, como na Operação Marajoara, na qual Cilon da Cunha Brum e Antônio Teodoro de Castro foram executados, houve um esforço deliberado para a ocultação de cadáveres, ressaltando-se que até a presente data não foram localizados os vestígios mortais das vítimas, mesmo após sucessivas tentativas de buscas patrocinadas pelo Estado – em cumprimento a ordem judicial – por meio do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) e Grupo de Trabalho Araguaia (GTA).”
Ministério Público Federal no Pará
Assessoria de Comunicação